MATÉRIA DAS ESTRELAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Helga Szmuk

 

 

Introdução

Escrevi o meu primeiro livro. Nele falei da minha vida, alegrias, dissabores, guerra, ditadores, dificuldades financeiras, coincidências (muitas) que vivenciei. Fui incentivada por meu novo amigo, o Bob Sharp, e o livro saiu. Chamei-o Da Minha Sacada, como se lá fora, da sacada do meu apartamento, eu tivesse visto de novo tudo pelo que passei durante minhas oitenta revoluções em torno do Sol. Como num filme, um longo filme.

Acho importante os mais velhos transmitirem informações e principalmente experiência para os mais moços. Considero-o mesmo uma missão. O que pode ser aproveitado pelos meus filhos, netos e, daqui a pouco, bisnetos, o poderá ser por dezenas, centenas, sei lá quantas pessoas. Não posso esconder que me senti realizada com o Da Minha Sacada.

Mas há algum tempo uma idéia vem-me assolando: só a minha vida? E a minha experiência na astronomia? Será que essa paixão que tenho não deveria ser compartilhada, novamente com não sei quantas pessoas? Conversei com um, com outro, perguntei-lhes o que achavam, indaguei-lhes se o assunto não seria enfadonho senão para aqueles que adoram astronomia.

Disseram-me — todos — que muitos iriam adorar ler sobre o universo. Que eu pusesse, sim, mãos à obra.

O grande impulso, desta vez, veio do Antônio Carlos da Silva, o Tony, um grande amigo. Ele disse:

— Quer mais uma dica? Fale sobre tudo o que você sabe de astronomia, sobre as viagens para ver eclipses e visitar o Jet Propulsion Laboratory, suas conversas com astrônomos famosos e suas trocas de experiências. Acho que é muito importante e algo que realmente as pessoas não esperam de uma senhora como você.

O Bob concordou com ele, mas não gostou da frase "uma senhora como você". Então eu perguntei ao Tony o que ele quis dizer com isso. A resposta veio logo — por e-mail:

— É que a maioria das pessoas pensa que as mulheres de mais idade têm apenas outros interesses. Imagine uma senhora viajando pelo mundo atrás de eclipses, indo para star parties, visitando as instalações da NASA. É algo bem fora do comum na cabeça das pessoas. Você falar disto seria uma forma de mostrar para elas que astronomia é para todos e não apenas para cientistas. Queiramos ou não, infelizmente é a impressão da grande maioria, pelo menos aqui.

Isto me fez pensar. Minha vida toda, bem como a de todo mundo, é em função da astronomia. Desde criança, pela janela olhava para a Ursa Maior, o relógio eterno, e por sua posição no céu verificava o horário do trem que passava atrás do nosso prédio. A bordo do navio, meu pai me ensinou desde pequena que existem estrelas "fixas" e planetas, vagabundos que se movimentam aparentemente sem rumo pelo céu mas que têm uma órbita semelhante à nossa ao redor do Sol. Ora estão à nossa frente, ora atrás. Hoje, já velha, quando estou cansada e deitada na cama com a janela sempre aberta de madrugada, não consigo parar de olhar para Vênus e Marte subindo no céu e fico esperando o Sol nascer. Sei exatamente em que ponto do céu em determinado dia do mês ele vai aparecer e quando preciso fechar as cortinas do terraço para ele não bater nos móveis. O ritmo das estações faz parte da nossa vida.

Também me lembro quando meu pai me mostrava Deneb se pondo, exatamente como quando Cristóvão Colombo avistou terra. Meu pai sempre apontava para o Oeste e dizia: Deneb! Ainda faço a mesma coisa. Os anos se passam, mas as estações, a sucessão e a mudança da duração dos dias e das noites em diferentes partes do mundo, tudo isto faz parte do meu mundo e do de todos nós. Não posso imaginar um único acontecimento que não esteja conectado com astronomia, com o universo. Se faz frio ou calor, chove, há seca, um e-mail do outro lado do mundo chega à meia noite ou de madrugada, tudo é astronomia. Fazemos parte do universo.

Dizem que a prostituição é a profissão mais antiga do mundo, mas, na verdade, a astronomia é que é. A agricultura e a navegação não poderiam existir sem ela. Nós humanos somos os únicos seres vivos a olhar e questionar os segredos do universo. É impossível olhar para o céu em qualquer lugar da Terra em qualquer hora do dia ou da noite e não ficar emocionado.

Eu me lembro de quando observei pela primeira vez um eclipse solar, o momento mais raro e espetacular do Sistema Solar. Estava na Áustria e esta experiência me contaminou para o resto da vida. Somos os únicos que temos eclipse total. Que coincidência divina que o Sol e a Lua terem o mesmo tamanho aparente no nosso céu! Somente nós temos este privilégio.

Em minhas inúmeras viagens para várias partes do mundo, sempre ligo primeiro para o planetário e um amigo já está garantido. Mas sempre retribuo esta amizade, pois na minha casa já ficaram hospedados astrônomos do mundo inteiro. É uma experiência fantástica porque, além de ter boa companhia, aprendi muito mais durante nossas conversas do que em muitos anos de estudo formal. Posso aconselhar tudo mundo a fazer isto; é muito gratificante e viajar fica muito mais barato e agradável. Também sempre me hospedo na casa de amigos da astronomia ou de amigos de infância.

Um dia, exatamente um ano depois que meu marido Imre morreu, eu estava no nosso apartamento no Guarujá e coloquei meu telescópio, um Meade 5-pol, na sacada — SACADA!!! Sempre ela. Meus amigos e eu estávamos jogando cartas, mas eu não estava muito interessada no jogo e, volta e meia me levantava para dar um a espiadinha no céu. Olhava para a Grande Nuvem de Magalhães, como havia feito muitas vezes antes, mas alguma coisa parecia diferente: havia uma estrela que eu nunca tinha visto antes. Voltei para a mesa de jogo, mas meus pensamentos continuavam longe.

Levantei outra vez. A estrela estava lá ainda; o que significava isto? Eu olhei o mapa do céu...e nenhuma estrela naquele ponto! Ainda não havia internet, mas me lembrei de ter visto numa revista um número de telefone, uma hotline caso alguma coisa fora de comum acontecesse no céu.

Quando finalmente meus convidados foram embora, liguei. Eles me contaram que sim, uma coisa rara havia acontecido: uma supernova explodiu na Grande Nuvem de Magalhães! Eu fui a quinta pessoa a ligar. Pediram meu nome, número de telefone, endereço e outros dados. Naquele dia muita coisa mudou outra vez na minha vida. Logo recebi um convite para visitar a Texas Star Party, um sonho. Fazia muitos anos que eu ficava pensando como deveria ser gostoso participar deste evento da astronomia amadora, mas nunca imaginei ser convidada um dia.

Imre tinha falecido um ano antes, um período difícil para mim. Ele havia sido meu companheiro por 45 anos e o pai dos meus filhos. Vivenciamos muitas coisas juntos. Mas eu sei que a morte faz parte da vida e agora a supernova me fazia pensar no ciclo da vida, da renovação. Uma supernova, uma estrela que ficou velha demais que não suporta mais seu próprio peso, se contrai num último gesto antes de morrer e depois explode com uma luz inimaginavelmente forte. É apenas um instante na história do universo, mas muito importante para a reciclagem dos elementos que são jogados no espaço e depois se contraem pela força da gravidade para gerar novas estrelas, novos planetas, nova vida.

Esta supernova, Shelton 1987, que tem em seu nome o do seu descobridor, aconteceu 150.000 anos atrás, mas somente agora a luz chegou até nós. Shelton a descobriu por acaso (depois eu aprendi que todas as supernovas foram descobertas por acaso, pois ninguém sabe onde e quando estas explosões acontecerão). Ele tirou fotos de uma parte do céu e, quando olhou as chapas, viu a supernova e foi o primeiro a avisar. Ele é canadense, mas trabalhava num observatório no Chile.

Nosso Sol também foi criado assim. Uma estrela explodiu e mandou todos os elementos e talvez também os planetas para o espaço. Nós somos, no mínimo, a segunda geração. Quem foi nossa progenitora? Uma estrela parecida com o Sol? Ou como Antares? Ou Sírius? Ninguém sabe, mas uma coisa é certa: todos nós somos produtos dessa estrela. Temos os mesmos elementos, o mesmo passado e os mesmos ancestrais.

Se um extra-terrestre viesse nos visitar, com certeza não notaria as pequenas diferenças, mas as semelhanças de bilhões de células. Para mim, todas as girafas e todos os tigres são iguais, mas para as girafas e tigres entre si, devem existir pequenas diferenças. Outra vez me lembro das palavras do grande Carl Sagan: somos todos matéria de estrelas.

Pois foi pensando nele, pessoa admirável que tive a alegria de conhecer, que começo este que é o meu segundo livro: Matéria das Estrelas.

Helga Szmuk

Capítulo I - Finalmente a Texas Star Party

Minha passagem era de São Paulo para Dallas e depois Midland. Entre Midland e Fort Davis não há nada! Naquela época a comunicação era feita somente pelo correio. Dez dias ida e outros tantos de volta, isso se não tivesse um feriado no meio. E ainda hoje existem pessoas que fazem isto. Inacreditável.

Eu cheguei ao aeroporto de Dallas e, para minha grande surpresa, além dos meus amigos onde fiquei hospedada, havia gente da Texas Star Party esperando para mim. Eles me convidaram para participar, à noite, do encontro dos astrônomos de Dallas e outras cidades, no planetário.

Star Party, Festival de Estrelas em inglês, é um evento da astronomia todo especial. Astrônomos se reúnem em algum do planeta para, juntos, observarem o firmamento. Cada um leva seu telescópio e outros instrumentos. Uma pura e verdadeira festa. Esta, do Texas, é uma das melhores.

Muitas pessoas ficam acampadas em barracas e felizmente nunca chove naquela parte do mundo. Outras levam seus trêileres de dois quartos com ar-condicionado. Banheiros são construídos para a Star Party e há também uma piscina com chuveiros para todos, com todo o conforto.

As razões pelas quais seria impossível eventos desses aqui são várias. O local tem de ser afastado das luzes da cidade, mas as nossas estradas são tão ruins que ninguém se atreveria a ir tão longe com tanto equipamento no carro. A segunda razão: segurança. Nunca, desde que a Texas Star Party existe, há 24 anos, alguma coisa sumiu. Nem mesmo um rolo de filme ou um par de óculos. Já aqui no Brasil não se pode ter certeza de que furtos não ocorram.

Eu já estive em festivais de estrelas no observatório de Campinas e a subida da serra lá é tão esburacada que muitas pessoas passam mal na viagem. Mas eles não querem asfaltar a estrada, para evitar especulação imobiliária e tráfego. O mesmo ocorre em Atibaia. Assim, tudo é uma questão de cultura. Temos o mais bonito céu do mundo e não há maneira de apreciá-lo.

Não deu para descansar e à noite meus amigos me levaram para lá. Apresentaram-me ao grupo e fui o centro das atenções. Alguém do Hemisfério Sul! De onde a supernova é visível! O encontro foi muito interessante e logo percebi que os "amadores" de lá são como profissionais em muitos outros lugares. Falaram de astrofotografia. Nesta época, CCD e "Go To" era ainda um sonho para poucos. Tudo era manual. Mostraram-me vídeos feitos por pessoas que viajaram longe para fotografar Eta Carinae e outras belezas do nosso hemisfério.

O problema agora para mim era como chegar a Fort Davis, sem estar de carro. Pegar uma carona seria difícil, pois todo mundo estava viajando com os carros cheios de equipamentos. Mas me prometeram que um rapaz de Oklahoma, que ia passar por Midland, me daria uma carona direto do aeroporto. Telefonaram para ele e ficou tudo combinado. Só que eu esqueci de pedir o nome dele! Chegar em Midland, no meio do deserto, sozinha e esperar por "alguém"...

Mas o avião pousou, saí do aeroporto tremendo de medo e lá estava um pick-up cheio de instrumentos astronômicos e um rapaz barbudo na frente dela, de pé! Eu me aproximei e lhe perguntei se ele estava me esperando. Disse que sim. Que alívio, que pontualidade, que eficiência — pensei. A minha surpresa era visível, mas ele não entendeu porquê — ele tinha prometido, não tinha? Tenho certeza de que se o tivesse encontrado (seu nome era Mike) numa rua escura em São Paulo, eu teria chamado a polícia. Nós nos tornaríamos muito amigos e muitas vezes depois falaríamos sobre nosso primeiro encontro.

E começamos a viajar. No caminho ele me falou a respeito da Texas Star Party, as pessoas e o céu mais escuro dos Estados Unidos. Nenhum outro carro na estrada de três faixas em cada pista, perfeitamente lisa, sem um buraco ou obstáculo. A cada 15 quilômetros, um banheiro limpo com sabonete, toalhas, até desodorante. Ninguém pensa em levar essas coisas embora, há respeito para com os outros. Nos dois lados da estrada, plantada a famosa flor rosa do Texas, em cores diferentes desde o aeroporto até a chegada no topo das Montanhas Davis.

Meu novo amigo me contou sobre as observações feitas, sobre as palestras. Depois paramos num lugar para almoçar, também limpo e bonito, e os outros clientes estavam TODOS com equipamento de astronomia. O Mike os conhecia. Os únicos fregueses e os únicos carros nessa estrada maravilhosa (nenhum pedágio). Gostaria de saber quem paga por isto. Um país rico, gente rica no meio do deserto sem um único rio ou lago!

Eu conhecia muito bem o Texas. Santo Antônio e Dallas são meu segundo lar, mas esta parte do estado eu não conhecia. É diferente de tudo que eu já tinha visto antes. Apesar de seca (é quase um deserto), todo mundo anda bem vestido, o gado é gordo, as estradas são um espelho. Claro, há poços de petróleo por toda parte. Nos dois lados da estrada vêm-se os poços com as máquinas trabalhando 24 horas por dia.

Mas no Iraque também há petróleo e o povo é pobre e ignorante. Por que será que pessoas passam fome no Nordeste brasileiro? Somos o maior exportador de soja do mundo!

Continuamos nossa viagem, e agora já havia se formado um comboio de amigos da Texas Star Party. Na nossa frente, as Montanhas Davis. Chegamos mais perto e começou o trecho de serra na estrada, com montanhas nos dois lados. Subindo o tempo todo, a gente só percebia a subida por causa dos ouvidos entupidos. Ninguém falava nada, somente contemplávamos a paisagem. De repente o Mike parou o pick-up e disse:

— Olha lá! As duas cúpulas do observatório MacDonald no topo da montanha. As duas cúpulas brancas que observam o Universo.

Eu sei que os astronautas deixaram um espelho na Lua para que os astrônomos do MacDonald pudessem mandar seus fachos de laser até lá e medir as pequenas oscilações no movimento dela. Um contato direto com um outro mundo! Para mim, as cúpulas de um observatório são o verdadeiro contato com o Criador. Quando a cúpula se abre e nos deixa ter uma pequena vista do Universo, eu me sinto numa igreja, sinagoga, ou mesquita. Mas isto não é artificial, não tem imagens baratas de plástico ou de pedra, é o Universo mesmo. Uma pequena parte, mas é real. O Mike, que já conhecia esta vista inesquecível, também ficou admirado como todos nós que amamos a astronomia, porque ela nos traz o Universo para um pouco mais perto.

Mas logo seguimos em nossa viagem nessa parte do mundo onde não se pode viajar de noite porque há estritas restrições de luz, as quais tudo mundo respeita. Em razão do observatório ter as câmaras apontadas para o céu e abertas a noite toda, qualquer interferência de luz podia estragar o filme.

Respeito. Palavra mágica, coisa tão importante. O Mike, que apareceu no aeroporto na hora certa; a estrada, sem sujeira ou buracos; os banheiros, limpos. Tudo isto é muito simples, mas faz a grande diferença. Os adesivos nos carros dizem: "Preferimos a luz das estrelas à luz das ruas". Grande verdade!

Finalmente, uma placa: Prude Ranch. Este é o lugar do nosso encontro com o Universo. Entramos devagar para não levantar poeira e na minha frente, telescópios, telescópios e nada mais. O Mike só quis me mostrar o lugar e logo me levou para o hotel. Mas minha curiosidade não agüentou e, mesmo depois de duas noites sem dormir, voltei para o Prude Ranch. O dono do hotel me deu uma carona — ele foi quem presenciou, 63 anos atrás, eu cair num lago gelado na Áustria! Inacreditável! Encontrarmo-nos aqui, no lugar mais afastado do mundo, no Oeste do Texas, e antes na Áustria, no topo de uma montanha!

Mas as melhores surpresas ainda viriam acontecer nesta mesma noite. Eu vi a sombra da minha mão iluminada por Vênus! Mais tarde repetiu-se a mesma coisa, mas pela Via Láctea. A escuridão é fantástica, também vi pela primeira vez na minha vida a luz do Zodíaco. A poeira cósmica! As "sobras" da criação, iluminadas pelo Sol do outro lado da Terra e iluminando a parte do céu (o Zodíaco) exatamente onde partículas de poeira cósmica ainda não foram atraídas pela gravidade. Foi demais para uma noite só! Mas as pessoas maravilhosas não se contentam em ver e admirar tudo isso, elas querem dividir com tudo mundo a experiência, o conhecimento deles. A palavra em inglês é share, dividir, mas também no sentido de multiplicar um conhecimento, um momento único deve ser dividido com os outros!

Meus novos amigos de Dallas me levaram durante o dia para outros cantos do Texas, fizeram piquenique para mim, contaram-me a história do grande estado americano. O dia seguinte foi o grande momento de visitar o observatório MacDonald.

Ficamos esperando um carro nos buscar, mas como ele não chegava, um homem que estava por ali, de bermuda, sandálias e barba por fazer, ofereceu-se nos levar até lá. Ele simplesmente pegou um ônibus tipo escolar, aqueles amarelos, estacionado em frente, abriu a porta e disse, "Vamos entrando". E fizemos isso. Um péssimo motorista: nas curvas, subindo para o topo da montanha, foi assustador, mas finalmente chegamos. O astrônomo de plantão cumprimentou nosso motorista com um abraço forte e eu achei aquilo muito democrático!

Depois de visitar este santuário e observação do Sol, fizemos o percurso de volta. Na chegada eu tinha separado uma nota de 5 dólares para dar para nosso motorista. Mas como ninguém fez isto, desisti. Perguntei ao Sr. Olin Atkinson, um dos meus amigos, por que ninguém queria dar uma pequena gorjeta para nosso péssimo mas bem-intencionado motorista. Uma risada generalizada foi a resposta. O motivo? O Olin me levou para dentro da casa e me mostrou uma pintura do nosso motorista na parede. Ele era o Sr. Prude, o dono de tudo aquilo. Nós e mais 800 pessoas do mundo éramos convidados dele, todos! Isto se chama preconceito. A bermuda, as sandálias e a barba dele levaram-me a tirar conclusões completamente equivocadas.

Eu estava julgando a bermuda e as sandálias, em vez da pessoa do Sr. Prude. Para mostrar a mentalidade dele e dos outros moradores de Fort Davis, todas as latas de lixo espalhadas ao longo da estrada têm um "dono" para cuidar. Todas elas, num raio de 80 quilômetros do observatório MacDonald, são do Prude (da família Prude). Neste lugar não há rio ou lago, só um riacho quase seco. Somente no fundo encontra-se um pouco de umidade. Lá chove uma vez a cada 10 anos e há crianças que nunca presenciaram água neste vale e que costumam gritar, "Nosso riacho vai embora!"

À noite vêm os animais das montanhas para procurar um pouco de água. Nós, da Star Party, somos proibidos de dar-lhes água ou comida, para não matar o instinto deles. Senão, eles não vão mais procurar água sozinhos e acabarão morrendo.

Isso me lembra também uma lei universal nos navios. Se um pássaro migratório pousa no navio para descansar, não se pode dar água ou comida pare ele. Isso para que fique muito tempo no navio e se perca dos outros, pois sozinhos eles não sabem sobreviver. Acho que ainda temos muito que aprender.

 

 

Capitulo II – Boas surpresas nas refeições

Sim, você que teve a paciência de ler minhas memórias deve estranhar que eu vá dedicar um capitulo inteiro ao tema "refeições". Mas estas refeições são diferentes de quaisquer outras no mundo. Vou tentar explicar.

Você fica na fila para escolher seu prato de comida caseira, excelente e variada, mas não é isto que faz a diferença. Depois você entra na sala dos refeições e escolhe um lugar livre. É aqui que está o grande momento. Nestas ocasiões eu já dividi a mesa com pessoas como Clyde Tombaugh, o descobridor do planeta Pluto; David Levy, que deu nome aos nove cometas, inclusive o famoso que se chocou com Júpiter; Dr. Hale, o descobridor do Hale Bopp; David Chandler, que me apresentou o John Dobson; Carl Sagan, que me levou ao Jet Propulsion Center; Gene Shoemaker e esposa; Bill e Mark, meus grandes amigos e alunos de John Dobson, que vêm de São Francisco de carro somente para mostrar o Universo para os outros, bem no espírito do grande John. Eles têm um Dobsonian 25-pol feito por eles.

Almocei com Al Nagler, que tem a mais famosa fábrica de oculares e tudo de ótica de precisão. Durante essas refeições nós descobrimos que ele também nasceu em Viena e fugiu na mesma época que eu, quando ainda criança. Com muita dedicação construiu uma das firmas de telescópios e óticas mais estimadas do mundo.

Numa desses ocasiões eu conheci o Bob Osborn, que se tornou meu grande amigo e companheiro de todas as situações até hoje. Muitos outros, todos os participantes são pessoas especiais. Se todas as pessoas fossem iguais a eles, o mundo certamente seria melhor. É a estas pessoas que eu vou dedicar os capítulos seguintes.

Capítulo III - Bill e Mark

Bill e Mark são pai e filho de São Francisco e são astrônomos "de calçada". Eles viajam a cada ano até Fort Davies com o Dobsonian de 25 pol — o Dob — dentro do carro. Mas não é para observar! É para mostrar o céu para os outros. Só que eles têm um grande problema: o espaço na van é pequeno e o Dob é muito grande. Então, ou eles ou o Dob! De noite, eles dormem no carro e o Dob fica fora. Mas no caminho de São Francisco até à TSP o Dob tem a preferência e Bill e Mark dormem sentados na frente.

Eles colocam o 25-pol no chão e apontam em vôo cego para qualquer ponto no céu. Eles o conhecem muito melhor do que eu conheço as ruas no bairro onde moro. Eles não usam "Go To", não usam mapa de noite, somente de dia. É quando eles fazem os planos para, de noite, só apontar! E lá está o objeto no foco. Eles olham somente através do buscador, que tem o tamanho do meu telescópio!

Bill me disse que há uma única coisa na vida em que eles não fazem economia: oculares e ótica. Cada peça custa algumas centenas de dólares. Todas do Al Nagler. Teve um ano que eles não estavam presentes na TSP. Que falta fizeram!

Nós quase perdemos o Bill. Ele teve um derrame cerebral e se recuperou, mas tem dificuldades para falar e se locomover. Mas ele está lá para subir na escada no escuro e focalizar um objeto para os outros poderem observar bem.

Eu vi o Omega Centauri (quase no chão) tão brilhante que não acreditei que fosse verdadeiro! A luz das estrelas é tão forte que parece artificial. Eles pulam de uma aglomeração para outra sem mapa nem instrumento, está tudo na cabeça deles. O M51 é uma coisa incrível! A ótica deles é perfeita mesmo, mas o conhecimento, também!

Eles também têm sempre uma história interessante para contar. Aprendi com eles que a Lei do Newton foi provada como universal com as estrelas do Gemini. Um sistema múltiplo, mas obedecendo às leis da gravidade. No lugar onde o Dob deles está montado há uma pequena cabana aberta para descansar. Eu adoro sentar no escuro e ouvir as muitas historias de cada um. Este descanso vale anos de estudo formal.

Uma noite visitamos M13, espetacular! Quase no mesmo campo a espiral NCG6207, o globular M92. Noutra fomos para o virgo cluster, separamos estrelas duplas. Viajamos a noite toda por milhares e milhares de anos-luz, sentimos na nossa retina a luz de estrelas que saiu de lá milhões de anos atrás — até que o cansaço nos venceu. Fomos dormir, mas ainda com as imagens na nossa mente.

Outra noite eles mostraram para outras pessoas e nós fomos visitar outros telescópios...No último dia eles arrumaram tudo, colocaram as coisas na van...Mas agora não havia mais lugar para Bill e Mark. Então, depois da meia-noite pegaram a estrada para o longo caminho de volta para São Francisco, o Dob estava bem confortável, com todos os cuidados para não se machucar, mas o Bill E Mark precisariam esperar até chegar em casa para descansar....

Capítulo IV - Clyde Tombaugh

No primeiro dia na TSP, à noite, na fila para o jantar, atrás de mim havia um senhor muito mais velho do que eu, com uma lesão visível na coluna que fazia ele ficar inclinado para frente. Ele estava acompanhado da esposa e do David Levy. Os três estavam envolvidos numa discussão muito animada. Eu pensei em deixá-lo passar na minha frente. Ele não aceitou e disse que naquele lugar ninguém estava com pressa.

Depois, com meu prato na mão procurando lugar para sentar, escolhi o lugar onde David Levy estava junto com os amigos dele se preparando para sentar e jantar. Minha grande surpresa, quase um susto, foi quando David me apresentou para os amigos dele: Helga, do Brasil e, para mim, Clyde Tombaugh e esposa! Eu não queria acreditar. O único homem vivo que descobriu um planeta! Ele teve a espinha quebrada após levar um tombo da escada de um telescópio. E ele recusou meu oferecimento de passar para frente....Estava com quase 90 anos!

O David percebeu meu espanto e disse:

— O Clyde descobriu umas 2.000 galáxias e nebulosas e além disso o planeta Plutão!

É verdade, na sua busca para o planeta X ele descobriu centenas de galáxias. Eu perguntei para ele (uma pergunta boba, ele já deve ter ouvido a mesma pergunta milhares de vezes):

— Como o Sr. descobriu Plutão, um objeto tão pequeno e invisível a olho nu?

Ele respondeu:

— Foi fácil, havia uma seta no mapa apontando para ele!

Esta resposta ficou famosa e até hoje eles estão me gozando na TSP. Eu acreditei! É pura verdade, mas somente depois que ele descobriu! Cada vez eu vou à TSP eles me dizem, "Achamos a seta!"

A história do descobrimento é fascinante. O mentor e professor dele, Percival Lowel, sempre soube que devia existir um planeta além de Netuno, porque ele tem um pequeno desvio na sua trajetória. Só podia ser um planeta, mas Lowel morreu sem tê-lo achado. Clyde continuou na busca usando o método "blink", tudo manual. Toda noite tirando fotos e comparando as chapas, até que um dia ele achou um objeto que se mexeu do seu lugar Ele havia achado! Ele deu-lhe o nome de Pl uto (Plutão, em inglês) em homenagem ao Percival Lowel.

Muitos anos depois, quando a sonda Voyager passou por Netuno, descobriram que havia uma lua de Netuno. O desvio de trajetória era por causa da lua e não por causa do planeta Plutão. O Clyde presenciou a nova descoberta no Jet Propulsion Laboratory, quando receberam as fotos.

 

Capítulo V - David Levy

Com David eu tive muitas noites de conversa. Sobre religião, tradição, ética e também astronomia. David é um adorador de coisas bonitas. Ele ama poesia, fica inspirado por uma nuvem, uma árvore, um amigo, tudo é fonte de inspiração para ele. Uma pessoa extremamente culta, lida e informada, com a mente aberta para tudo.

Eu sabia que ele é judeu praticante. Justamente ele, que tem como paixão de observar cometas, nove têm o nome David Levy! Para mim, não combina. Cometas sempre foram considerados coisas proibidas de falar. O universo é perfeito e de repente vem um cometa perturbar o ritmo das coisas consideradas infalíveis, perfeitas. Por séculos cometas foram as causas de desastres, morte, guerras e outras mazelas. Como ele pode ser judeu praticante? Ele disse para mim:

— É muito inspirador! Quando eu era criança e olhava para o céu para saber que o shabat começou ou terminou com a primeira estrela no céu. No dia de jejum a primeira estrela significava para mim que podia comer. A estrela sempre foi símbolo de começo ou fim ou mudança na minha vida. Também meus pais sempre responderam minhas perguntas com sinceridade, nunca mentiram para mim. Ninguém bebia, ninguém falava palavras rudes, minha mãe era a rainha do lar. Eu quero que meus filhos tenham um dia as mesmas lembranças da casa paterna deles.

O interessante é que pouco tempo depois Carl Sagan dizia quase a mesma coisa...Quando ele me explicava algo nunca falava com ar superior. Nunca me deixou sentir que ele sabia muito mais, que ele era famoso no mundo todo. Um dia ele deu um livro de poesia para mim, poesia sobre astronomia, uma coleção raríssima. Quando tudo mundo estava fazendo piadas comigo por causa da seta de Plutão, ele me explicou em voz baixa:

— Porque é impossível; um planeta não é estável, mexe-se constantemente.

Claro, coisa óbvia!

Ele que mostrou num telescópio de 36 pol o Einstein Cross no Abel. Ele segurava a escada para mim, segurava minha mão para subir neste monstro, para não perder esta vista única, a prova de que o Universo é curvo.

Em todas as ciências é indispensável ter provas! Mas a teoria de Einstein somente é demonstrável em circunstâncias extremas. Como no eclipse no Sobral e aqui num Dobsonian construído em casa! Eu me lembro como ele ficou triste quando nos perdemos o nosso grande amigo Gene Shoomaker. O último Cometer que se chocou com Júpiter tem o nome dos dois: Shoomaker-Levy.

Agora ele ganhou uma bolsa de estudos na Universidade de Jerusalém. No meio da guerra. Que Deus o proteja!

Capítulo VI - Don Garland e Walter Scott Houston

Foi o Bob Osborn que me apresentou ao Don Garland. Ele é o diretor do planetário de Dallas. No primeiro ano em que eu fui à TSP a esposa do Don estava grávida do primeiro filho deles. Agora eles têm três, já adolescentes e todos estavam na TSP. Certa vez um deles me perguntou, quando tinha quatro anos:

— Por que as estrelas piscam no horizonte mas não piscam no zênite?

Ele já nasceu praticamente observando. Uma criança na cidade não tem esta vantagem de perceber as pequenas fenômenos do universo! Também aprendi com Don que os índios também têm sua "mitologia", mas diferente da nossa ou da grega. Ele nos contou pequenas histórias sobre as constelações na fantasia dos índios. Todos os povos na Terra olharam para o céu e se inspiraram.

Walter Scott Houston, ou Scotty, era um profundo conhecedor do céu. Ele escreveu o seriado "Deep-Sky Wonders" (Maravilhas do Céu Profundo), mas foi dele que aprendi usar meus próprios olhos e meu conhecimento para observar. Eu já havia aprendido isto com meu pai mas a gente fica viciada com todas estes maravilhas que os revistas nos oferecem. A tentação é grande.

Foi o Olin Atkinson que disse, "Vamos comprar mais coisas que nós podemos dispensar". Muitas crianças e jovens perdem o prazer da astronomia porque os instrumentos são complicados e caros demais. Nós temos dois olhos! (bem, a maioria das pessoas tem...).

Eu e o Scotty deitamo-nos de costas no chão, ele me disse para manter os olhos fechados por algum tempo para adaptação à escuridão. Depois foi só abrir: lá estava o Universo, mais e mais estrelas apareciam à medida em que as pupilas se abriam...

O Scotty disse:

— Está vendo a estrela do meio da Ursa Maior?

Claro desde a minha infância eu vi ela apontando para a polaris, que nos diz em que latitude estamos neste momento. Então ele disse:

— A terceira estrela é uma estrela dupla.

E de repente eu vi a outra estrela que eu nunca tinha visto antes. Eu aprendi a observar conscientemente, a dirigir meus conhecimentos. Aprendi isso com uma pessoa que tem os maiores telescópios do mundo à sua disposição.

É bastante comum um pai me perguntar que telescópio comprar para seu filho. Minha resposta é sempre a mesma: Nenhum! Deixe ele aprender primeiro a usar os próprios olhos e depois, muito depois compre um binóculo e, muito mais tarde, um bom telescópio.

Infelizmente perdemos também o Scotty! Ele tinha quase 90 anos, mas para nós era pouco! Eu comprei alguns livros, verdadeiras preciosidades, da viúva dele. Ela foi obrigada, lamentavelmente, a vender tudo e por um preço muito inferior ao do real valor. Astronomia não traz dinheiro (astrologia, sim!), mas proporciona uma vida repleta de prazeres.

 

Capítulo VII – Visita a Pasadena

Aconteceu de eu fazer amizade com David Chandler e sua esposa. Eu estava na TSP com Ben Harrison, um amigo e colega de natação americano, mas que morava em São Paulo. David escreveu um livro muito útil para todos, sobre exploração do Universo com binóculos. Eles moravam perto de Los Angeles e nos convidaram para ir à casa deles. Ele prometeu nos levar, depois do JPL, à sede da Planetary Society, em Pasadena, e conhecer Carl Sagan, seu presidente. Um sonho!

Chegamos lá poucos dias depois do encerramento de mais uma TSP. Fomos de carro até Pasadena e avistamos uma casa pequena, modesta. Lá havia-se criado e trabalhava o grande mestre. Eu estava esperando uma coisa grandiosa, uma mansão ou coisa parecida, mas, nada disso. Qualquer pessoa podia entrar e olhar ou falar com algum monitor, que era um estudante voluntário.

Mas nós fomos com David Chandler e ele me apresentou ao Carl Sagan! Eu já o havia visto muitas vezes em filmes na TV, em revistas, mas este encontro foi um acontecimento único. Muitas pessoas achavam, em tom de crítica, que ele estava ficando rico com a ciência! E por que não? Será necessário morrer de tuberculose ou de pobreza, como Schubert, Mozart e muitos outros? Por que não ganhar dinheiro honestamente com a divulgação da astronomia? Os livros, vídeos e filmes dele renderam-lhe milhões, e merecidamente! Quantas pessoas se interessaram por astronomia por causa dos livros e palestras dele!

Uma pessoa extremamente simples, cativante, com um sorriso aberto e um aperto de mão forte e sincero. Ele me convidou para visitar alguns cenários de seus filmes, alguns deles com fotos verdadeiras feitas pelas espaçonaves. Depois de responder a todas minhas perguntas com admirável paciência e precisão, nos sentamos para conversar.

Sagan era também um ativo membro da SETI — Society for Extra-Terrenial Intelligence (Sociedade de Inteligência Extraterrestre). A SETI instalou antenas parabólicas pelo mundo todo para captar eventuais interferências ou ruídos regulares. Pelo que se sabe, nada foi escutado, pois o ruído precisa ser consistente e repetitivo para ser considerado como sinal. Sagan perseguiu esse objetivo até à sua morte. Era o seu grande sonho, ele sabia que tal descoberta mudaria completamente nossa visão da vida.

Quando lhe fiz a pergunta óbvia, se houvera algum progresso na busca por inteligência extraterrena, a resposta dele, para minha grande surpresa, foi SIM. Sim?? Disse ele, com uma serenidade incrível:

— Descobrimos que há seres inteligentes na Terra! A interferência de ondas de rádio da Terra é tão intensa que chegamos a esta conclusão...

O humor e a inteligência dele eram fantásticos. Pouco eu sabia naquele dia que ele já estava muito doente. Ele sabia, mas tinha muita esperança.

Nós falamos sobre religião, ética, astronomia amadora no Brasil e a grande contribuição dos amadores de todo mundo para a astronomia. Os profissionais não têm o tempo nem o dinheiro para explorar muitas coisas. Foi bom ouvir aquilo.

Nosso tempo terminou, infelizmente. Mas por enquanto minha sede e minha fome estavam satisfeitas por muito tempo. Aliás, por uma vida inteira.

Capítulo VIII – JPL

No dia seguinte Ben e eu fomos ao JPL. O David Chandler nos deu uma carta de recomendação com um pedido para nos tratarem como convidados especiais. Que maravilha! No caminho para lá eu já estava muito ansiosa. Posso imaginar como as pessoas se sentem quando vão à Meca, Roma, ou Jerusalém.

O JPL é um santuário da elite da humanidade. As pessoas mais talentosas, mais experientes, se reúnem neste lugar que naquele momento era alvo de atenção do mundo todo. A Voyager havia chegado ao seu destino, ultrapassara o último planeta (exceto Plutão) do sistema solar. Plutão não estava no projeto porque não se encontra no mesmo trajetória dos outros planetas O objetivo fora alcançado com todo êxito. Levou 12 anos para visitar, fotografar e circunavegar Marte, Júpiter, Saturno, Urânio e Netuno.

O mais incrível é que a Voyager só vai deixar o sistema solar após 150.000 anos! Atingirá a estrela mais próxima, a Alfa Centauri, dentro de 300.000 anos.

Curiosamente, muitas pessoas acham que depois de Netuno ou Plutão acaba o sistema solar, mas não é assim. Existe o cinturão Kuiper (em homenagem a Gerald Kuiper, astrônomo holandês), de onde vêm os cometas próximos, e a nebulosa de Oort (Jan Oort, conterrâneo de Kuiper, que a descobriu). Há o vento solar que chega até à metade da distância para a próxima estrela, a Alfa Centauri. É lá que termina o sistema solar.

Muitas luas foram descobertas, muitas vulcões em luas de outras planetas e muitas outras coisas que em séculos de pesquisa não o haviam sido.

Eu estava pensando no fato de que o maior progresso está em o mundo todo estar do lado do descobrimento, torcendo para o sucesso. Cristóvão Colombo estava sozinho contra o ceticismo das pessoas, Galileu precisou se esconder, Johannes Kepler foi banido da Áustria e muitos outros homens e mulheres viram-se em situação semelhante. Não tiveram esta sorte.

Este pessoal sabe que depois que termina o projeto perde o emprego. Eles podiam ter ganho muito mais na indústria e por um período maior, mais estável. Mas eles amam o que fazem e, além disso, ninguém tem dificuldade em arrumar emprego depois do término. Há mulheres e homens que tinham filhos pequenos no começo e agora já são quase adultos.

Eu conheci depois a pessoa que fez os cálculos que abreviaram a duração do vôo de mais de 20 anos para 12, usando os planetas como uma espécie de trampolim que dava um impulso para o próximo.

Viajamos uma hora mais ou menos e apareceu um aviso: JPL - Jet Propulsion Laboratory. Uma pequena subida e lá estava! Muitos policiais, guardas na entrada, os carros são inspecionados. Recebemos uma identificação para entrar no santuário. Eu mostrei nossa carta de recomendação e eles nos apresentaram a um rapaz jovem e simpático que seria o nosso guia.

Ele era um estudante de pós-graduação em Astrofísica e com isso ganhava um pouco de dinheiro. Primeiro ele nos mostrou uma réplica exata da Voyager. Não era exatamente uma réplica, mas um dublê. Ele contou que tudo que vai ao espaço tem uma reserva aqui na Terra para o acaso de ser preciso substituir alguma coisa. Desde um simples parafuso até os computadores e as câmeras mais complicadas que já foram construídas pelo Homem.

Também vi o famoso disco (um long-play de vinil) com a voz de um homem e uma mulher e uma breve descrição da nossa Terra. Mas ele nos contou que o disco nunca foi enviado: seria um absurdo pensar que, considerando a idade da nossa Terra, mais ou menos 4,5 bilhões de anos, um meio de reprodução de voz que existiu durante cerca de 20 anos da vida terrestre tivesse alguma utilidade. Seria a coincidência das coincidências, existir uma civilização extraterrena que estivesse exatamente na era do long-play! Um absurdo dos maiores.

Mas a NASA precisa de dinheiro, muito dinheiro. Eles não podem gastar um centavo sem aprovação do Congresso. A opinião pública é muito importante. Uma pequena fraude, um marketing não muito honesto às vezes é necessário para influenciar a opinião pública. Às vezes eles acham água em Marte, que também traz bastante verba para a NASA.

Quantas vezes nós prometemos para o público mostrar coisas no céu que somente nós conhecemos e sabemos que eles não vão poder ver. Mas pelo menos eles vão levantar os olhos e olhar o céu e observar a Lua e Júpiter, e muitos deles vão ficar "contaminados" para sempre.

Nós andamos entre os maravilhas da técnica moderna, mas agora íamos entrar no santuário. Somente pessoas convidadas com antecedência podem entrar nesta sala. Lá se recebem as mensagens diretamente das espaçonaves como a Voyager, de um outro mundo!

A sala parece um anfiteatro, com uma galeria em cima para os visitantes e em baixo, os computadores, os cientistas e alguns poucos jornalistas. Os visitantes ficam separados do resto por uma parede de vidro. Nós podemos ver tudo, mas não há contato direto. A euforia ainda era muito grande: alguns dias atrás a Voyager tinha chegado ao último planeta. Missão comprida!

O rapaz que era nosso guia contou-nos coisas fantásticas. Algumas horas antes da chegada, na proximidade de Netuno, eles receberam mensagens e fotos mostrando que o planeta também tem anéis, uma novidade perigosa. A espaçonave podia se chocar contra os pedaços de gelo que formam o anel. Não havia mais possibilidade de dar ordens, pois a distância do planeta da Terra é de mais de uma hora-luz. Qualquer comando emitido daqui leva uma hora até chegar e outro tanto para voltar. Não havia mais tempo.

Uma coisa eu aprendi neste momento e me foi confirmada depois pelo cientista que deu uma entrevista coletiva para a imprensa. Em qualquer ramo da ciência as pessoas têm tempo à disposição. Se ocorre um erro pode-se repetir e corrigir. Neste caso, não: cada encontro com um planeta era uma coisa nova, sem precedentes, sempre trazia novidades enormes e não havia tempo para agir frente aos novos acontecimentos. Mas é justamente isto que fez esta aventura uma coisa fantástica. Os descobridores das Américas devem ter sentido o mesmo.

Recebemos fotos direto de Netuno. Eu não entenda os sinais os sinais e os bipes, mas só de saber que eles vinham direto do espaço deu-me arrepios. A Voyager passou para outro lado do planeta sem ter sido atingida pelos ameaçadores anéis. E outra surpresa: Netuno tem uma lua! Então foi isto que provocou o desvio de trajetória (interferência, wobble) ao planeta, e não Plutão, como se imaginava !

Descobriu-se também que Netuno não tem somente hidrogênio e hélio, mas também metano. Foi nesta revelação que o repórter da União Soviética gritou no rádio, "Tem vodka em Netuno!".

Muitas informações ainda estarão chegando até nos despedirmos da Voyager, que cumpriu sua missão com sucesso, além das expectativas, até agora. Posso imaginar como o pessoal está feliz e triste no mesmo tempo. Passaram tantas dias e noites juntos descobrindo, aperfeiçoando e torcendo.

Alguns anos mais tarde disseram-me que depois de passar pelo último planeta do sistema solar, a pequena nave feita pelo Homem ainda estará mandando sinais! Eles não estavam contando com isso.

Ela ainda tem mesmo uma longa viagem pela frente. Ninguém sabe onde vai parar e o que acontecerá com a nossa Terra ate lá!

Boa sorte, brava gente, e boa viagem para a heroína Voyager!

Capítulo IX - Eclipsemaníaca

Minha paixão pelos eclipses vem de longa data. Desde criança, quando observei pela primeira vez, nunca mais me livrei dessa minha grande paixão. Sim, um grande amor é sempre único, não é mesmo? Cada eclipse também é único. Tem sua duração, sua "cara", as aventuras relacionadas ao evento, os amigos que compartilham o maior e mais raro espetáculo do sistema solar.

Somente nós, na Terra, temos eclipse total. Somente daqui da Terra, o sol e a lua têm o mesmo tamanho aparente. E não é para sempre, e nem sempre foi assim: a lua está-se afastando da Terra lentamente e daqui a uns 500.000 anos não haverá mais eclipse total. Como não havia há alguns milhares de anos atrás.

Num desses eventos, durante um eclipse da lua que observei com meus amigos Moshe Bain e Ernesto Nagy, havíamos recebido os dados da NASA com os minutos e os segundos em que a sombra ia entrar e sair das diversas crateras da lua. Um de nós com relógio na mão ouvindo o bipe do Observatório Nacional que dava os segundos e frações de segundos, e sempre estávamos atrasados. Nas crateras anteriores, a mesma coisa. Seria fácil mandar nossas observações de volta com os segundos certos, tal como fora indicado, mas nós somos honestos. Escrevemos, mais uma vez, exatamente como foi, incluindo o nosso erro. Mas nossa surpresa veio logo: estávamos certos, pois tinha havido um atraso na hora mundial!

Naquele ano os relógios de todo o mundo foram atrasados em um segundo ao terminar o dia 31 de dezembro.

Os eclipses são tão diferentes como as impressões digitais. Depende da distância da lua neste momento, da Terra ao sol, a fase dos erupções do sol (sunspots), que têm seu máximo a cada 11 anos. Depende também do lugar na Terra onde é visível.

No equador ou perto do equador os eclipses são sempre mais longos. Mas mesmo assim nunca levam mais tempo que sete minutos. Tem gente que viaja milhares de quilômetros para ver um eclipse de um ou dois minutos. Também pode acontecer de vir uma nuvem e tudo é perdido. Mas faz parte do jogo.

Nós geralmente não ficamos juntos no mesmo lugar. Se por acaso um grupo perde o espetáculo, é possível que o outro tenha mais sorte. Outra vez a palavra é: compartilhar! Somos um grupo de mais ou menos 25 pessoas, os Caçadores de Eclipses. Mas é uma brincadeira caríssima e não se pode contar com muito conforto. Mas isso também faz parte do jogo.

Numa Texas Star Party (TSP) conheci um representante do Roger Tutthill, que vendia telescópios e equipamentos de astronomia, de quem eu já tinha comprado muitos itens. Uma ocasião liguei para ele do Texas para New Jersey para fazer uma encomenda. Na conversa, ele disse para mim que dali a dois dias estava indo para o Brasil organizar a observação de um eclipse que seria visível somente sobre oceano Atlântico. Disse que ia fretar um avião para poder caçar a sombra, de maneira a ser possível ficar dentro dela por nove minutos. Seria um recorde mundial e histórico.

Ofereci-lhe a minha casa enquanto eu estivesse na TSP. Ele aceitou, e como meus amigos tinham a chave do meu apartamento, foram buscá-lo no aeroporto e levaram-no para a minha casa. Eu nunca havia visto o Roger antes. Quando voltei ao Brasil, achei na mesa uma carta de agradecimento dele, um binóculo de presente e um convite para ver o eclipse de nove minutos. Isso nunca tinha-me passado pela cabeça.

O dia do evento chegou e eu convidei todos os outros caçadores de eclipse para ficar na minha casa. Somente isto já era um evento! Gente da NASA, pessoas dos mais famosas instituições dos Estados Unidos se encontraram na minha casa, todos com seus laptops fazendo os últimos cálculos. No dia seguinte fomos para o Rio de Janeiro.

Lá, nos hospedamos num hotel, mas antes demos uma passada no planetário para instruções sobre a nossa aventura. Um casal de japoneses havia vindo de Tóquio. Viajaram 19 horas. Naquela noite ninguém conseguiu dormir.

Levantamos bem cedo, ainda de madrugada, para ir para o aeroporto. O tal casal foi conosco e no dia seguinte voltou para o Japão! Isto é eclipsemania!

A subida do avião foi toda calculada para encontrar a sombra da lua no momento exato. Nenhum outro avião subiu neste instante, uma gentileza das autoridades. O Roger mandou tirar os banco do lado esquerdo para colocar os telescópios.

Já tínhamos viajado um bom tempo, nossos olhos tapados para nos acostumarmos à escuridão, e encontramos a sombra da lua no oceano e no céu! Inesquecível! Somente de avião é possível ver este fenômeno. Não havia também perigo de nuvens, pois estávamos acima delas.

O grande momento, agora! Tirar os filtros do telescópio e... TOTALIDADE! Mas o momento único é o Anel de Diamantes, o último raio de luz escapando atrás das montanhas da lua. Um brilho enorme. O anel mais bonito e mais raro do universo. E eu tive o privilégio de vivenciar isto. Até hoje não posso acreditar. Depois o piloto do avião disse que isso foi a aventura mais fantástica que ele já havia tido na vida profissional.

Totalidade: o eclipse tem diversas fases. Chama-se Primeiro Contato quando a sombra toca o disco solar. Depois vem a fase da Parcialidade, como se fosse um pano se esticando sobre o disco solar. Demora uma hora ou mais, mas o Segundo Contato é que é o mais esperado, quando a sombra cobre o disco completamente. Mas alguns segundos antes tem a parte mais espetacular, chamada O Anel de Diamantes: a sombra já está cobrindo o disco, mas alguns raios de luz ainda escapam por entre as montanhas da lua. É um facho de luz que vai até o fim do sistema solar.

Neste exato momento é preciso tirar o filtro de proteção dos instrumentos. Até a sombra não ser total é perigosíssimo olhar sem filtro. Mas uma vez total não se pode mais ver nada com o filtro cobrindo o telescópio ou a máquina fotográfica. É um momento muito delicado mas único no universo. Depois começa a fase da Totalidade. Depende da localização da lua e da Terra que duração terá, mas nunca passa de sete minutos, é o máximo possível. Tudo isso precisa ser visto na linha central da sombra. Senão não é total, mas somente parcial.

As autoridades já apontam muito tempo antes onde vai ficar a faixa da Totalidade e onde fica a linha central. Depois vem o Terceiro Contato, quando uma parte do sol fica visível outra vez, e finalmente a última, a fase em que o sol fica "livre" da sombra novamente. Nessa viagem de avião tudo isso foi considerado e ainda seguimos um tempo à sombra com nosso aviãozinho. Assim tivemos nove minutos de totalidade. Um recorde mundial!

Não posso deixar de contar mais uma dessas coincidências da minha vida. Algum tempo atrás, em Nova York, fui ao Planetário Haydn para comprar um livro. Mas estava fechado para almoço. Eu estava visivelmente aborrecida e um senhor se ofereceu para comprá-lo para mim e deixá-lo na portaria do planetário. Eu aceitei e ele se apresentou como diretor do planetário. Pois quem chegou junto com o Roger Tutthil na minha casa foi nada menos do que aquele "senhor". Tornamo-nos amigos e já estive diversas vezes na casa dele em New Jersey.

Com ele também aconteceu o encontro com o Cruzeiro do Sul no Corcovado...

Isso me traz cena inesquecível. Certa vez tive dois cientistas da NASA na minha casa (moro em São Paulo) e os levei ao Rio para verem o pôr do sol do alto do Corcovado. Um deles é católico e o outro, judeu, mas ambos se diziam  ateus, vivendo cheios de números e cálculos na cabeça.

Alguns momentos depois do pôr do sol, o Cruzeiro do Sul  apareceu, com Alfa e Beta Centauri numa beleza magnífica.

Sentindo a presença de Deus, o católico fez o sinal da cruz e o judeu colocou o chapéu na cabeça, dizendo:

— Shmah Israel (Escuta, Israel)!

Com gestos distintos, cada um à sua maneira, prestaram homenagem ao mesmo Deus.

Capítulo X – Caçadores de eclipses

Estes anos foram muito férteis para os eclipse chasers, os caçadores de eclipses. Nós também observamos o "GRANDE" de sete minutos na Baja California, com o Bob Osborn. Nuvens haviam chegado pouco antes do acontecimento e quase tudo mundo foi embora para procurar outro lugar. Mas o céu abriu e nós assistimos o espetáculo inteiro. Está tudo em vídeo, com música e tudo a que se tem direito.

Desde então eles me chamam "A salvadora dos eclipses". A verdade é que eu nunca perdi um eclipse por causa de nuvens. Vou me tornar a "Santa Helga" dos eclipse chasers...

Em 1993 houve um eclipse anular em El Paso, no Texas, perto de Fort Davis, e era ocasião da TSP. Que coincidência maravilhosa! Saímos de Fort Davis Moshe Bain, Ernesto Nagy, meu amigo Ben e eu, de carro, sob chuva torrencial. Um lugar do deserto onde nunca chove! Mas meus amigos confiaram nos meus poderes sobrenaturais e chegamos ao lugar onde nosso outro amigo, o Roger Tutthill, estava à nossa espera.

Bem no centro da sombra! O pessoal de televisão estava lá e a Prefeitura nos preparou uma recepção de rei. Almoço num ponto da montanha com vista para o Rio Grande, o México e, o que era o melhor, com CÉU AZUL!

Eclipse anular é diferente. Não se pode dispensar o filtro mesmo na totalidade, porque é muito perigoso olhar para o sol sem proteção.

Eu estava imaginando no que os antigos teriam pensado quando observaram isto. Anular? O que significa? O Universo era considerado perfeito, sem exceções. Qual é a figura mais perfeita? Um círculo. Todos os planetas luas descrevem um círculo na sua trajetória! Óbvio! Mas está ERRADO. O genial Johannes Kepler demonstrou que o trajetória dos corpos celestes não é um circulo perfeito, mas uma elipse perfeita. Precisava ser perfeita porque já tinha havido problema com o clero na Áustria.

Agora nós pudemos observar a verdade dessa fórmula perfeita e bonita. A lua nesse dia estava mais afastada da Terra e por isso parecia menor, sem cobrir totalmente o sol.

Um momento de reflexão: por que foi sempre tão difícil convencer os religiosos a aceitar a verdade? Todos nós estávamos pensando a mesma coisa enquanto observávamos.

Pudemos ver outra vez os últimos raios de sol escapando através dos montanhas da lua. Mas no eclipse anular é diferente, não é tão espetacular quanto no total.

O telescópio, de maneira a poder acompanhar o movimento da lua quando a observação é feita de um ponto de baixa latitude, como era o caso, precisa ficar bem inclinado para que seja conseguido o alinhamento polar. Só que nesse ângulo o instrumento perde o balanceamento. Isso se corrige facilmente com um contrapeso, mas é complicado trazê-lo num avião.

Ernesto, então, comprou dois vidros de xampu e encheu-os com água até que estivessem com o peso correto, de contrapeso. Ficou perfeito.

Outra vez nos despedimos dos nossos companheiros eclipse chasers, só não sabíamos que desta vez a nossa despedida do Roger seria para sempre! Dois anos atrás (2001) ele faleceu. Mais um amigo se foi. Um amigo de muitas aventuras e muita aprendizagem, um astrônomo dedicado e companheiro.

Até qualquer dia, Roger...

Capítulo XI - Torre de Babel, ou meu último eclipse

O David Chandler me escreveu perguntando se seria possível acomodar o John Dobson na minha casa para observação do eclipse total do sol em Santa Catarina. Que pergunta!!! O John na minha casa? Nesta época ainda não tinha e-mail e cada carta demorava 10 dias para ir e 10 dias para voltar no mínimo. Eu quase não agüentei esperar a resposta. Mas logo depois veio outra carta, da Hungria, perguntando se eu podia abrigar três astrônomos. Claro que podia. Mais uma, desta vez da Checoslováquia. A mesma pergunta. Eu estava pensando que sorte falar tantas línguas, não vai ter problema de comunicação. Tudo que a gente sabe e útil! Já percebi isto há muito tempo.

Os primeiros a chegar foram os húngaros bem equipados com câmeras de vídeo, tudo muito bem planejado. Uma para observar e registrar os bichos durante a totalidade, outra para observar o comportamento das pessoas e finalmente uma terceira para filmar o eclipse em si. Muita eficiência e muito profissionalismo (todos são amadores exceto um).

Logo chegou o Dobson. Eu fui ao aeroporto para receber cada um dos meus hóspedes. Dobson, com quase 80 anos, mesmo depois de uma viagem de São Francisco, estava pronto para dar uma palestra depois do almoço. De noite convidei o grupo de astronomia de São Paulo para jantar e conhecer meus amigos. Mas quando tudo mundo estava junto conversando na major paz e alegria, tocou o telefone. Era do aeroporto internacional, o grupo da Checoslováquia havia sido detido por ter trazido um "carregamento de contrabando". Fomos até lá e o "contrabando" era telescópios, câmeras e outros instrumentos para medir a temperatura e os raios do sol durante o eclipse.

Nossa explicação de nada adiantou e eles permaneceram detidos Eu tive uma idéia genial (como sempre): ligar para o cônsul da Checoslováquia. Ele chegou "voando" e liberou os "contrabandistas": três rapazes e uma moça, pessoas cultas, inteligentes, cheias de entusiasmo para aprender e ensinar coisas novas. Se alguém traz uísque falsificado de Paraguai não fica detido, com certeza.

Mas para mim foi uma nova e valiosa amizade. O cônsul, em gratidão de ter sido chamado por mim, me trouxe livros, fotos e boletins da astronomia, além de um livro com fotos de Konkoly, o mentor do meu pai quando adolescente. Ele convidou todo mundo a ir com ele depois do eclipse para Sobral, no Ceará, para conhecer o lugar onde a Teoria do Einstein foi comprovada. Imaginem, um checo! Um povo pequeno e culto da Europa central.

Durante o jantar nos falamos em alemão com os checos, inglês com Dobson e os húngaros, e com o resto, em português. Os checos foram embora para Santa Catarina na mesma noite para preparar tudo. No dia seguinte fomos de avião até Florianópolis onde Ivan, a família dele e todos os membros do planetário esperavam por nós. Nunca tive tanta honra na minha chegada antes!

O pessoal do planetário já tinha preparado tudo para meus convidados ilustres e eu passarmos a noite, mas eu resolvi ficar na casa do meu filho Ivan e houve até briga para ver quem vai ficar com o Dobson. Eu ganhei e ele acabou ficando conosco.

Eu percebi que o John Dobson é a pessoa mais rica que eu já encontrei na minha vida. Ele chegou com uma sacola pequena na mão, dentro uma camisa mais uma troca de roupa de baixo e nada mais. Todas as noites ele lavava as peças, pendurava-as no banheiro para secar e no outro dia usava-as outra vez. Ele não possui nada além de seu grande conhecimento, mas o mundo inteiro é dele, é bem-vindo em qualquer parte do globo e ele adora o que está fazendo. Nós no Brasil estamos tentando imitá-lo. Espero que consigamos.

Conversamos muito durante as três semanas em que ficamos junto e aprendi muito! Aprendi que viajar sem peso, sem coisas supérfluas nessa vida é muito mais fácil e agradável. Eu mesma já perdi tanta coisa!...Mas o Dobson, não. O que ele tem ninguém tira, está na cabeça e no coração dele. Um homem feliz!

No planetário, o Ivan me ajudou com as traduções, eu já estava cansada de fazer isto em três línguas. O Ivan o fez com uma facilidade incrível, em húngaro, inglês e português, sem problema nenhum. Somente os americanos e os brasileiros não falam línguas, eles não sabem o que estão perdendo.

No dia seguinte saímos num ônibus fretado pela prefeitura. As esposas dos astrônomos prepararam comida e doces caseiros para nós, tudo muito bem organizado. Os húngaros disseram que isto serviu como lição para eles para o próximo eclipse, em 1999, na Hungria.

Chegamos a uma fazenda e quem estava lá? O Ernesto e o grupo dele! Nós não havíamos combinado nada! Ele que foi meu companheiro em tantos eclipses, numa mesma fazenda em Santa Catarina, no meio do nada!

Chuva, como sempre, no dia anterior, mas de noite o céu limpou (a Santa Helga ajudou...) e os húngaros e o Dobson avistaram para primeira vez o céu do Brasil Um silêncio completo, fora OH, MEU DEUS, QUE MARAVILHA!

Parecia uma coisa de outro mundo. Eta Carinae. A Caixa de Jóias. As Nuvens de Magalhães, e outras maravilhas. E o eclipse ainda estava 12 horas à frente! O John Dobson estranhou que nossos instrumentos fossem muito pequenos para um céu como nosso.

Ele é o inventor do famoso telescópio que leva o seu sobrenome, que permite fazer em casa com abertura grande mas sem nenhum luxo. Não tem acompanhamento, não tem nada além do essencial. A idéia dele é: quanto mais pessoas puderem ver o Universo, melhor. O telescópio precisa ser simples e barato. Não dá para tirar fotos porque não tem acompanhamento. Mas ele disse (e acho que tem toda razão), que uma foto você pode comprar por 20 centavos, e tirada pelo telescópio Hubble, que nenhuma pessoa pode tirar. Mas, em compensação, todo mundo pode ter um telescópio Dobson feito em casa.

Ele podia ter ficado milionário com a sua invenção, mas ele me disse:

— Milionário, mas com problemas de coração, problemas com bancos, fornecedores etc.

Assim, ele vive muito bem, está agora com 86 anos, ativo e ensina aos jovens como melhor olhar para o Universo. Um homem riquíssimo!

Houve algumas perguntas pitorescas. Uma mulher na minha casa disse que adorava astronomia, lia tudo a respeito, mas nunca pensou que fosse conhecer o John Dobson pessoalmente. Agora somente falta de conhecer o Sr Newton... (existe um telescópio Newton).

No dia seguinte, eclipse. Os húngaros dividiram a tarefa muito eficientemente (tenho o CD-ROM deles comigo, mandaram de presente, é uma obra-prima). O Dobson não quis arriscar e mostrou para a criançada o eclipse em projeção. Ele disse que há o perigo de uma criança tirar a proteção e olhar para o sol sem nada. Ele, que veio de tão longe, não olhou através do telescópio para mostrar às crianças como observar com segurança. É uma pessoa única!

Outra vez o famoso Anel de Diamantes, a escuridão ao meio-dia, os pássaros que param de cantar, as vacas que vão dormir. Aprendi com os húngaros a prestar atenção nesses coisas. Valeu a pena! Nossa vida é acostumada aos dias e noites e nós não prestamos atenção que não é tão obvio assim.

No fim o sol apareceu outra vez, nos congratulamos e outra despedida de muitos amigos novos. Amigos que viveram juntos momentos raros e inesquecíveis, amigos que apreciam as mesmas coisas. Amigos para sempre.

O próximo eclipse seria no Ceará, quase no mesmo local onde, em 1919, foi observada e provada a teoria de Einstein sobre a curvatura do Universo. Todos estavam ansiosos para poder ver outra vez o espetáculo. Minha passagem estava comprada, o Roger Tutthill também prometeu vir, era tudo para termos mais um acontecimento juntos, mas a vida é imprevisível.

Eu comecei a sentir alguns flashes de luzes no meu olho direito, a oftalmologista disse que não era nada. Mas piorou, eu me senti muito mal e mesmo assim ela insistiu que não era nada, me deu algumas gotas para pingar, mas não adiantou. Fui fazer o mapeamento da retina, eu não consegui mais dirigir, o Ernesto me levou. O médico disse que era precisa operar ainda naquele dia ou no seguinte. Foi horrível! Fazer um monte de exames, tudo de ônibus, e à noite fui para o hospital sozinha, de táxi.

O fim da história: no dia seguinte ao do eclipse cheguei em casa, do hospital, com muitas dores e sem poder enxergar. Roger Tutthill, Ernesto Moshe, todo mundo me ligou do Ceará, radiantes de felicidade. Mas isto era o fim das meus aventuras como caçadora de eclipses.

Eu havia ido várias vezes à Texas Star Party e foi também a primeira vez que faltei. Eles me mandaram cartas, telefonaram e me encorajaram.

Muitas outras coisas mudaram também. Aprendi a usar computador e posso ficar em contato com meus amigos da astronomia, ainda ser útil. Tenho uma página sobre astronomia e, assim, a vida continua.

Capítulo XII – Observadores do céu

As palavras seguintes são na maioria do John Dobson Como a invenção dele não está patenteada, as palavras dele também não têm os direitos autorais assegurados. Pelo contrário, ele quer que sejam divulgadas, espalhadas e aproveitadas. Alguns pensamentos são talvez meus, mas mesmo assim foram inspirados por ele e por outros grandes homens e mulheres da ciência.

Uma das grandes problemas do conhecimento humano é que nós estamos vendo o Universo durante o dia, da superfície de um planeta que quase não tem semelhança com o Universo em si. Nosso planeta e nossa vida são impulsionados pelo luz do sol. O universo regido pela gravidade.

A Terra é quase toda ferro e rocha, mas o Universo é na maioria hidrogênio. O que nós vemos são montanhas, rios, oceanos, jardins e desertos, mas o universo é quase tudo gás, parcialmente condensado pela força da gravidade e formam estrelas e galáxias, e algumas pitadas de poeira cósmica. Esta poeira é produzida no interior das estrelas e espalhada para o interior das galáxias pelos explosões estrelares. Mas essa poeira é rara, e tal como nossos corpos, as rochas e montanhas são feitas por ela. É uma raridade, uma peça de colecionador!

Nosso lar tem quase cinco bilhões de anos. A matéria que é solúvel em água se infiltrou no interior e está no centro, coberta pelas rochas e continentes, e a água dos mares ficou salgada. O sal de nossos corpos é o sal do oceano antigo, uns 400 milhões de anos atrás...Foi quando nossos antepassados rastejaram para fora do oceano à procura de outros alimentos e outros ambientes Nós somos os descendentes deles. Somos pequenos sacos de água salgada pendurados nos ossos procurando oxigênio da camada fina de atmosfera sobre nós. E contemplando com olhos de curiosidade o universo durante a noite, que se expande em todos as direções.

Mesmo o oxigênio que nós respiramos é impulsionado pela luz do sol através dos nossos parentes: algas no oceano e agora pelos folhas verdes das matas.

Mesmo a chuva é originada pela luz do sol. Mas o universo como um todo tem bem pouca atmosfera. E sem chuva e sem luz do sol. É muito frio, muito escuro e muito vasto, tentando desesperadamente se juntar por uma força de atração das partículas.

Mesmo a radiação do sol é promovida pela força de atração. Aumentou a temperatura do seu interior em até 15 milhões de graus Celsius e isto é a causa de ele nos dar calor com seus raios já por quase cinco bilhões de anos. E essa duração possibilitou nosso desenvolvimento até hoje, que nos permite contemplar o céu durante a noite. É a atmosfera fina que cobre nosso planeta que nos permite olhar e observar o universo até os cantos mais remotos.

Mas mesmo que o sol tivesse-nos dado esta possibilidade, ele não nos permite contemplar o universo durante o dia. Por causa disso, uma grande parte do universo fica incógnita para a maioria das pessoas. É a diferença entre o que nós vemos daqui da Terra e do universo à noite.

Algumas pessoas se uniram para possibilitar ver o universo através de grandes telescópios durante a noite. O grupo se chama San Francisco Sidewalk Astronomers, Astrônomos de Calçada de São Francisco, na Califórnia. Para aumentar o número de pessoas interessadas em observar e possuir telescópios, eles ajudam ensinando muita gente a construir grandes telescópios fáceis de construir e que não são caros.

A população humana é de mais de seis bilhões, e para possibilitar um número maior de pessoas ver e entender o universo, é preciso que mais grupos no mundo se juntem e façam a mesma coisa. Não é somente ver, é preciso entender também. Por isso os possuidores de telescópios estão mais do que felizes em explicar e responder perguntas para o maior número de pessoas possível.

Milhões de olhos e mentes estão à espera para receber as maravilhas do universo. Conhecimento não é hereditário, cada geração precisa de aprender tudo de novo. É o dever de todos compartilhar os conhecimentos uns com os outros. Somente assim é possível abrir a mente das pessoas que estão curiosas de saber mais, somente assim podemos acabar com superstição, crenças e medos.

Conhecimento é a melhor arma e não faz mal a ninguém. Ninguém ficou doente por causa de uma superdose de conhecimento e verdades.

Capítulo XIII – Os amadores do Texas

Existe uma nebulosa que é o resultado de uma supernova com o nome de Caranguejo e tem o número 1 na lista de Messier. Mas não existem anotações sobre a data exata em que aconteceu a explosão. Cálculos estimavam que poderia ter acontecido mais ou menos no ano 1.000 A.D.

Os amadores do Texas tiveram então uma idéia: um grupo de pessoas foi dividido em dois. Um foi para China e outro para o México. A idéia era que um acontecimento de tal grandeza, uma estrela enorme aparecendo no céu de repente, precisaria ter sido registrado por um artista, pintor ou poeta. Sabendo-se que nesta época os chineses e mexicanos não tinham nenhum tipo de contato, a expetativa de acharem alguma coisa nos dois lados da Terra era muito grande. E achariam!

Eles vasculharam os museus e em ambos os países acharam desenhos de uma estrela gigante no mesmo ponto do céu. A data era a mesma: 1054! Dois artistas que nunca se encontraram sentiram a necessidade de registrar um fato tão marcante.

Muita gente pergunta o porquê dos amadores. A resposta é amor pela astronomia, desejo de saber mais e também muito importante: dinheiro.

Jovens astrônomos profissionais não têm tempo nem dinheiro para fazer isto.

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Conhecendo mais de Helga Szmuk

UMA VIDA DE CONTRASTES

 

Terra natal: Áustria, Viena, mas não é minha terra preferida.

Língua que falo melhor: Nenhuma. Falo, escrevo e penso em 6 línguas, todas com sotaque. Continuei meus estudos em muitos países, com suas diversas línguas.

Minha mãe era austríaca de Viena, meu pai oficial da marinha inglesa. Minha mãe gostava de música, conheceu Sigmund Freud, Gustav Mahler, etc. Meu pai detestava Viena e foi feliz somente no mar, no navio.

Eu aprendi com ele a manejar o sextante antes de aprender a ler e escrever. Eu aprendi navegação com as estrelas, e muitas historias dos gênios da astronomia e navegação. Durante as longas viagens, meu pai me contava como outras crianças aprenderam as histórias de fadas. Minha mãe achava que Viena era o centro do mundo, e eu fui obrigada a estudar balet na ópera em Viena.

Foi assim que eu vivi: entre 2 mundos! Meu mundo verdadeiro ficou enorme. Um mundo sem fronteiras, sem patriotismo, sem um clube favorito, mas com um horizonte de 360Ί .

Casei-me com um médico húngaro e cada um dos meus filhos nasceu em outros países e começaram a vida com línguas diferentes. Quando falo com eles no telefone temos sempre problemas em decidir em que língua vamos falar.

Eu fugi da Áustria do Hitler, fugi da Hungria dos comunistas, fugi do Israel da guerra.

Há pouco tempo aprendi a me comunicar pela Internet. A Internet me dá a possibilidade de estar em contato com o mundo, meus filhos e netos, que moram longe de mim.

Eu sofri descolamento da retina e perdi a vista de um olho, então, no momento, a coisa mais preciosa e importante são os 20% da visão do outro olho.

Anualmente vou para Texas Star Party, lá me encontro com Bob e uma vez por ano ele vem aqui, sempre em função da astronomia!

 

 

Revista Rio Total

Direção e editoria

Irene Serra

http://www.riototal.com.br/astros/